Inspira

Hoje a gente chove

“Acorda, meu bem; tá na hora, não nos atrasemos.”

O desorientado da hora me impede de perceber que a tua voz era mistificação.

Retiro o sonho dos meus olhos e encaro, inquisitivamente, o espaço do meu quarto. Meu corpo é molde da cama, minha cama é molde meu: postado, parado, deixado no meio do quarto, sendo o quarto. Depositório de gente.

Mas nunca consegui ser apenas depositório. Como quarto, sempre me disseram que eu aparentava ter um ar convidativo. É hábito meu colocar incensos dentro de mim e arrumar meus trapos da melhor maneira possível, para que tu te sintas bem recebido. Eu te coloco cobertores e mantas por cima, para que o frio nos teus pés não te acorde do sonho. Eu aprendi os milímetros nos quais ceder, para que a tua coluna possa encontrar conforto na minha superfície. No princípio, eu era a cama, mas aprendi a ser o quarto inteiro.

Hoje, sou apenas a cama.

Olho pro rés de mim e vejo as tuas chaves quase beirando o embaixo da cama. Olho pra frente e vejo pedaços teus, oferecidos a mim como presentes, compondo o todo do que observo. Tudo uma bagunça, tudo impiedosamente revirado e… estranho.

Às vezes, sinto que não deito em mim, mas que deito no chão.

Às vezes, sou um palíndromo de duplas negativas.

Mas decido abrir minhas janelas e deixar o ar cair sobre a minha superfície. De hoje, não passa.

Hoje a gente chove, mesmo que umedeça.

Autor: Eduardo Moll/Inspira

Foto: Pixabay

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